“Tecnologia e o Mundo da Vida: do Jardim à Terra” é o primeiro e-book de 2018 da Editora UFFS
A obra é uma tradução realizada por Maurício Bozatski, professor do curso de Filosofia da UFFS

Publicado em: 23 de março de 2018 10h03min / Atualizado em: 23 de março de 2018 11h03min

No início do mês de março, a Editora UFFS lançou o primeiro e-book do ano de 2018. A obra “Tecnologia e o Mundo da Vida: do Jardim à Terra” é a primeira tradução para Língua Portuguesa do livro do filósofo americano Don Ihde. O responsável é o professor de Filosofia da Unviersidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) – Campus Chapecó, Maurício Bozatski.

O e-book está disponível para download na página da Editora UFFS: www.uffs.edu.br/editora e pode ser baixado nas versões PDF, ePUB e .mobi.

“Tecnologia e o Mundo da Vida: do Jardim à Terra” é a tradução de “Technology and the Lifewold: From Gardem to Earth” e trata das relações humano-tecnologia. É uma das mais importantes obras para a filosofia da tecnologia e pós-fenomenologia, escrita originalmente em Língua Inglesa, em 1990, por Don Ihde. Apesar de ter sido traduzida para várias línguas, ainda não havia tradução em Língua Portuguesa.

Nesta semana conversamos com o tradutor, professor Maurício, numa tentativa de abordar os principais pontos da obra. Confira:

 

UFFS: Por que traduzir essa obra de Don Ihde? Qual sua relação com o autor?

MAURÍCIO BOZATSKI: A escolha por traduzir este livro específico do Ihde foi feita por se tratar do livro mais sistemático do autor, que explica de forma mais abrangente os seus conceitos. E, apesar de ter sido lançado originalmente em 1990, apresenta temas muito atuais para tratar do fenômeno da tecnologia, além de se relacionar com a tradição filosófica de forma atemporal. Alguns dos livros do autor constam na bibliografia da minha tese de doutorado e também nos encontramos em diversas oportunidades, por isso surgiu a ideia de traduzir seus livros para a Língua Portuguesa, porque a obra trata da Fenomenologia e a Filosofia da Ciência, que são áreas pelas quais outros estudiosos da Filosofia poderiam se interessar , e sabemos que o idioma pode constituir uma barreira que, com tradução, estamos ajudando a superar. Assim, Ihde ficou feliz com a ideia, entrou em contato com seus editores e pediu para que eu ficasse responsável por traduzir ou indicar tradutores de sua obra para o Português.

 

UFFS: Quando ou como a tecnologia passou a ser objeto de reflexão por parte da Filosofia?

MB: A questão é que muitas vezes chamamos algo pelo seu nome muito tempo depois que isto já existe. Por exemplo, a ciência passou a ser chamada assim a partir do século XIX, apesar de considerarmos Galileu, que viveu dois séculos antes, um cientista, e a Revolução Científica passou a ser chamada assim apenas em 1949 apesar de, possivelmente, ter se iniciado com Tycho Brahe em 1572. Os “cientistas” eram chamados então de filósofos naturalistas, apesar de desenvolverem algo que hoje reconhecemos como sendo ciência – ou seja, pesquisas que constituíam i) um programa de pesquisa; ii) uma comunidade de experts; iii) uma questão que era elaborada muito antes de a resposta ser encontrada. Então, na Filosofia nós temos, por exemplo, Platão falando sobre a linguagem no seu Crátilo, mas a linguagem se tornaria o centro do discurso filosófico apenas no século XX a partir do Círculo de Viena, Wittgenstein, etc. Trata-se de uma questão epistemológica e ontológica onde a relação entre o humano (sujeito) e o mundo (objeto) passa a ser entendida como sendo intermediada e constituída a partir da linguagem. Com a tecnologia acontece algo similar, talvez possamos apontar Karl Marx como sendo um dos primeiros filósofos a entender as grandes tecnologias (fábricas, modos de produção, etc.) como elementos transformadores da realidade social e portanto da mentalidade. Ernest Kapp foi o primeiro a escrever um livro dedicado totalmente à Filosofia da Tecnologia (Philosophie der Technik, 1877). Mas depois da I Guerra Mundial ninguém mais – fossem os filósofos ou a sociedade em geral – podia ignorar que as tecnologias eram decisivas tanto em situações de limite, como a guerra – tanques, submarinos, navios, metralhadoras, aviões, etc.) quanto para o dia a dia. Os automóveis, por exemplo, mudavam a arquitetura das cidades. Assim, foi Martin Heidegger o primeiro grande filósofo a colocar a tecnologia no centro do discurso filosófico. Entretanto, Heidegger possuía uma visão um pouco distópica da tecnologia, tanto que a entendia como um fenômeno a ser estudado transcendentalmente, ou seja, a Tecnologia com T. Heidegger gostava mais de tecnologias pré-evolução industrial, como os moinhos de vento que, ao contrário de tecnologias como uma usina hidroelétrica no Rio Reno, se adequavam à natureza e não a transformavam em estoque e matéria-prima. Heidegger, portanto, é considerado como filósofo da I Geração da Filosofia da Tecnologia, com Dessauer, Ortega Y Gasset e outros. A Segunda Geração de filósofos da tecnologia é composta basicamente por pensadores da Escola de Frankfurt, por alunos de Heidegger, como Hannah Arendt etc. A visão sobre a tecnologia ainda é negativa em muitos casos sob esta perspectiva. Ihde vai se inserir na Terceira Geração da Filosofia da Tecnologia, que analisa as tecnologias a partir de sua existência material e concreta e tem uma abordagem mais multicultural e pluralista sobre o fenômeno da tecnologia.

 

UFFS: Tentando explicar o título do livro: o que é o “Mundo da Vida”? Que sentidos movimentam ou que condições você acha que são colocadas quando o autor diz "deixamos o paraíso para herdar a terra"?

MB: O termo “Mundo da Vida” é emprestado da fenomenologia, no original alemão Lebenswelt, e implica a ideia daquilo que está dado ou aquilo com que os humanos lidam nas questões prático-operativas da vida. A visão distópica sobre a tecnologia acredita que as tecnologias desvirtuam, colonizam esse Mundo da Vida, tornando os humanos seres inautênticos, desviados de seu projeto existencial originário. Por isso Ihde faz a analogia entre o mito hebraico do Jardim do Éden, que implica algo como isto: os humanos traíram a confiança de Deus ao buscarem o conhecimento do bem e do mal e passaram a fazer roupas (tecnologias) para esconder a sua nudez, assim foram expulsos desse paraíso por desvirtuarem esse Mundo da Vida original. Ihde demonstra que esta ideia de que humanos são independentes das tecnologias repousa numa concepção falsa ou num mal-entendido. Antes mesmo de nos tornarmos Homo Sapiens, nossos antepassados hominídeos já utilizavam tecnologias há pelo menos 2,5 milhões de anos, ao passo que os Homo Sapiens possui aproximadamente 350 mil anos (de acordo com descobertas recentes), logo, somos o produto do uso e interação dos hominídeos com a tecnologia e não o contrário. Assim, herdamos a Terra e nos tornamos a espécie dominante pelo uso do fogo, ferramentas de corte e costura, barcos, agricultura, escrita e outras tecnologias. O Paraíso é a imagem dos humanos vivendo em plena harmonia com a natureza, mas isto de fato nunca existiu. Como afirma Richard Wrangham em seu livro Catching Fire: How Cooking Made Us Human, o uso do fogo, além de moldar nossa estrutura física e adequar a paisagem ao nosso melhor interesse, foi o diferencial entre sermos o almoço ou almoçarmos.

 

UFFS: No livro, tecnologia é abordada em um sentido mais amplo. Desfazendo a imagem de hightech que temos da tecnologia e a colocando como parte da vida cultural/social. Por que você acha que a sociedade desenhou essa percepção sobre o que é tecnologia? E o que é tecnologia?

MB: Sim, temos a impressão de que tecnologias são nossos smartphones, foguetes espaciais etc., todavia, a partir do momento que você adapta uma vara para alcançar o fruto mais maduro de uma árvore, você está utilizando uma ferramenta. Muitos animais, aliás, se valem de tecnologias e não somente os primatas, peixes usam pedras para quebrar ostras, por exemplo. O fato é que nos tornamos a espécie que pode desenvolver tecnologias e megatecnologias como nenhuma outra, e qualquer coisa que desenvolvemos ou utilizamos para potencializar nossos sentidos, para maximizar nossa força, para nos proteger do clima, é tecnologia. Uma capa feita para se proteger do frio, feita a partir da pele de um mamute é um invólucro que pretende nos isolar do meio ambiente, na mesma ordem que uma nave espacial o faz. Por isso, Ihde não busca conceituar as tecnologias, tentar entender cada uma delas particularmente ou sua possibilidade universalmente, até porque tecnologias são multiestáveis, isto é, um carro pode ser simplesmente um meio de condução, mas pode servir para isolar do clima e pôde ser o elemento para a revolução sexual, fazendo com que taxas de natalidade explodissem onde foi implantado (como de fato ocorreu). Por esta razão, o que se analisa são as relações humano/tecnologia e como elas definem e moldam o modo como vivemos, como interpretamos e como mudamos a realidade.

 

UFFS: O exemplo do anticoncepcional, no livro, demonstra a forma como a tecnologia pode moldar o comportamento humano. Considerando que a invenção de dispositivos de controle do tempo também alteraram nosso comportamento em relação a ele, como podemos entender essa relação humano/tecnologia e quais as consequências dela para a condição humana e social?

MB: As tecnologias mudam tanto a nossa micropercepção quanto a nossa macropercepção. Quando eu olho para o universo com um telescópio (que potencializa minha visão) essa relação vai operar na micropercepção, todavia, a partir desta observação eu entendo que a Terra não é o centro do universo, que ela é muito pequena em relação ao todo etc., isso muda minha visão astronômica, ou seja, minha macropercepção. Tecnologias mudam nossa percepção sobre o tempo, sobre o espaço (uma viagem no lombo do cavalo tem um estatuto diferente de uma viagem numa aeronave), mudam nossas relações sociais, afetivas, mudam nossos hábitos alimentares, a forma como nos comunicamos, como nos sentimos pertencentes a um grupo social. Pudemos observar na última eleição presidencial nos USA como as redes sociais foram determinantes e podemos imaginar que também serão aqui no Brasil. Tecnologias moldam e formatam nossa forma de pensar e de agir. E isto é tudo que somos, o que pensamos e o que fazemos, ou deixamos de fazer.

 

UFFS: O autor elabora sobre tecnologia e controle. Sobre a autonomia, neutralidade e poder. Do ponto de vista do senso comum, o homem é colocado como criador de tecnologia? Se sim, como é possível não ter controle? Porque o controle da tecnologia virou uma questão? Quem controla quem?

MB: Se você olhar para as tecnologias particulares e seu desenvolvimento você vai perceber que nem os designers ou os engenheiros possuem controle sobre o alcance que uma tecnologia específica terá. Olhe para o caso do micro-ondas. Ele foi inventado a partir de uma descoberta ao acaso e mercadologicamente foi simplificado para ter dois botões de operação, por que quem cozinhava eram as mulheres e estas não eram educadas em ciências no começo do século XX, de modo geral. Mas assim que foi introduzido, as mulheres puderam deixar a comida preparada, que poderia ser aquecida sem a necessidade da presença delas no lar, assim elas puderam se libertar do labor interminável de produzir as tantas refeições diárias para a família e puderam ocupar posições no mundo do trabalho, nas universidades e na sociedade, isso antes do advento do micro-ondas seria impossível. Então, uma tecnologia que nasceu a partir de um preconceito de gênero acabou sendo importante para produzir exatamente um efeito contrário. Assim, ninguém pode predizer o efeito da introdução de uma nova tecnologia, nem o seu criador, e, neste sentido, o destino das tecnologias é incontrolável. Mas agora, fazendo uma pequena reflexão a partir de Herbert Marcuse e o Homem Unidimensional, tecnologias são produtos e, portanto, bens vendidos no âmbito de uma sociedade cultural que é determinada pelas nações mais avançadas. Assim, o meu desejo por um Smartphone da marca X ou da marca Y é determinado pela indústria cultural, o que implica uma forma de controle. Mas isso tem mais a ver com as assimetrias da globalização. E, evidentemente, a partir da Revolução Industrial, do século XX, sobretudo, as nações que mais investem em desenvolvimento tecnológico – internet, e-mail, computador, agrotóxicos, GPS etc foram iniciativas e investimentos estatais – são as que mais dominam o cenário comercial e político mundial. Isso nos leva a refletir, localmente, sobre como o Brasil participa muito pouco no cenário das últimas revoluções tecnológicas. Quase tudo o que temos aqui é importado ou controlado por empresas e companhias estrangeiras, assim, temos muito pouco controle sobre nosso próprio futuro, seja no plano político, econômico e social.

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