Não se trata de poesia, mas a frase “engenharia é sobre gente” é repetida e assinada embaixo pelo professor da UFFS – Campus Chapecó, Leandro Bordin. Graduado e mestre em Engenharia Civil, e doutor em Educação Científica e Tecnológica, Bordin aponta para a necessidade de um deslocamento de olhar: para além das obras, enxergar, sobretudo, as pessoas que vivem (ou sobrevivem) em meio a elas. Nesta perspectiva, ele orienta pesquisas que unem técnica e humanidade, e que têm trazido à tona um tema incômodo, mas urgente: o racismo ambiental.
A partir do campo Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), suas investigações mostram que decisões aparentemente neutras (como onde instalar uma rede de esgoto ou qual bairro receberá coleta seletiva) estão carregadas de escolhas políticas, históricas e sociais. “CTS surgiu como reação à ideia de que ciência e tecnologia são neutras e sempre produzem progresso. Na prática, cada decisão técnica envolve valores, interesses e disputas de poder”, explica o pesquisador. E é nesse cruzamento entre técnica e desigualdade que o racismo ambiental se revela.
      Em palavras simples, Bordin define o racismo ambiental como “as injustiças ambientais que recaem de forma desproporcional sobre grupos racializados”. Segundo ele, isso significa que pessoas pretas, pardas e indígenas são as mais afetadas pela falta de saneamento básico, pela ausência de coleta seletiva e pelos impactos de políticas urbanas excludentes.
      O professor explana que o exemplo mais evidente está no saneamento, uma vez que os piores índices de abastecimento de água, esgoto e drenagem estão nos bairros periféricos, habitados majoritariamente por pessoas negras e pardas. Segundo ele, esses grupos sofrem as consequências da falta de infraestrutura, um direito humano universal, de forma desproporcional em comparação com áreas nobres e majoritariamente brancas.
      Para Bordin, essas desigualdades não nascem do acaso técnico, mas de decisões que priorizam determinados grupos e territórios. “Quando um bairro periférico não tem rede de esgoto, isso não é erro de cálculo. É uma escolha política que define quem tem acesso ao que é básico.”
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      Professor Leandro Bordin 
Quem limpa a cidade?
      Foi com essa lente que Bordin passou a orientar pesquisas no curso de Engenharia Ambiental e Sanitária da UFFS – Campus Chapecó. Duas delas, conduzidas por Gabriela Tecchio Simoka e Mateus Oliveira, escancaram a face mais humana e invisibilizada da desigualdade urbana: o trabalho dos catadores de materiais recicláveis.
      Gabriela investigou cooperativas; Mateus, os catadores autônomos, que percorrem as ruas da cidade. Os dados revelam um padrão nítido: o ônus da limpeza urbana recai sobre pessoas racializadas.
Conforme os dados levantados nas pesquisas, nas cooperativas, 73,75% dos catadores se autodeclararam pretos, pardos ou indígenas. Entre os autônomos, o índice foi de 64%. “São pessoas com baixa escolaridade, que vivem do que a cidade descarta, muitas vezes há mais de 20 anos, sem vínculo formal, seguridade social ou reconhecimento”, frisa ele.
      As entrevistas feitas pelos pesquisadores revelam histórias de preconceito e desconfiança: há o relato de olhares de reprovação, comentários ofensivos, tratamento hostil. Bordin destaca que a sociedade ainda não reconhece a catação como profissão digna, mesmo sendo uma atividade essencial e oficialmente reconhecida pela Classificação Brasileira de Ocupações.
      As diferenças entre o trabalho autônomo e o cooperado também dizem muito sobre o funcionamento da cadeia da reciclagem. “O ambiente cooperativo é mais seguro, mas há queixas sobre a qualidade do material recebido. Quem já trabalhou nas ruas diz que antes podia escolher o material com valor comercial. No galpão, é preciso lidar com muito rejeito”, relata o professor.
      Já os catadores autônomos enfrentam condições adversas: sol, chuva, esforço físico intenso e falta de estrutura para armazenar e separar materiais. A pesquisa esclarece que, ainda assim, muitos defendem a liberdade de organizar o próprio tempo, e valorizam a autonomia, a flexibilidade e a ausência de hierarquia, apesar de conviver com incertezas e riscos.
      Os dois aspectos, flexibilidade e ausência de hierarquia, são pontos considerados decisivos para as mulheres com filhos, especialmente as mães solo. “No fim da pesquisa com os trabalhadores das cooperativas, percebemos que muitas mulheres, especialmente mães solo, viam no trabalho uma forma de conciliar renda e cuidado com os filhos”, conta.
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      Catadores autônomos usam o quintal para fazer a separação
Essas percepções se confirmaram no estudo conduzido pela estudante Luiza Marcon Siqueira, no âmbito da Iniciação Científica. Os resultados mostraram que as mulheres separadoras de resíduos enfrentam sobrecarga maior que os homens, e a maioria delas é não branca, é chefe de família e tem histórico de informalidade. Esses dados, como resume Bordin, reforçam como gênero e raça se combinam para intensificar vulnerabilidades sociais.
      Outro trabalho, realizado por Thays Regina Miotto Begnini, investigou o acesso ao saneamento básico sob a perspectiva de mulheres moradoras de duas áreas periféricas de Chapecó. Conforme o professor, que orientou Thays, o perfil das entrevistadas mostra múltiplas vulnerabilidades: a maioria se autodeclara preta, parda ou indígena, tem baixa escolaridade e renda e acumula o sustento da família com as tarefas domésticas.
      A análise expôs a precariedade em todos os eixos do saneamento: abastecimento de água com falhas e contaminação, esgotamento sanitário com fossas rudimentares, ausência de coleta regular de lixo e alagamentos recorrentes devido à drenagem ineficiente. “Essas mulheres enfrentam, diariamente, a negação de direitos básicos. O racismo ambiental aparece ali, no concreto: nos baldes de água, nas fossas improvisadas, no lixo acumulado”, sintetiza Bordin.
      Os dados dialogam com o Censo 2022, que mostra Chapecó com 69,25% de população branca. “Nas nossas pesquisas, a presença branca é minoritária, em torno de 30%. Isso mostra a sobreposição entre cor, pobreza e exclusão, e como o território continua sendo um marcador de desigualdade”.
      A tecnologia também escolhe lado?
      Ao discutir essas questões, Bordin volta ao ponto central do CTS: a não neutralidade da tecnologia.
      “Acreditar que a tecnologia é apenas um instrumento técnico é um equívoco. Decidir o que será construído, quem terá acesso e quem arcará com os impactos já é uma escolha política”, afirma.
      Ele cita dois exemplos: o saneamento básico e os algoritmos digitais. “Quando um bairro periférico não recebe água tratada, não é porque o projeto falhou; é porque ele não foi pensado para aquele território. O mesmo vale para os algoritmos: parecem neutros, mas são programados por interesses econômicos e de controle.”
      A ausência desse debate na formação dos engenheiros preocupa o professor. Em um mapeamento feito com os estudantes Tainá Culau e Mateus Oliveira, 131 dissertações e teses sobre racismo ambiental, cadastradas no Banco de Teses e Dissertações da Capes, foram analisadas. Nenhum dos 131 trabalhos era da área das Engenharias, demonstrando, conforme o professor, o quanto o campo técnico ainda evita discutir os impactos sociais de suas decisões.
      Apesar disso, o grupo encontrou 30 pesquisas sobre saneamento que se aproximam do tema, tratando de comunidades quilombolas, indígenas e periferias urbanas. “Mesmo quando o termo ‘racismo ambiental’ não aparece, o problema está lá, materializado nas desigualdades que a engenharia deveria ajudar a resolver”, afirma.
      Para Bordin, mudar esse cenário exige revisar os Projetos Pedagógicos de Curso (PPCs) das engenharias. “A temática precisa ser transversal, presente em todas as disciplinas. É necessário romper com a separação entre o técnico e o social e formar profissionais capazes de atuar com senso crítico, ético e humano.”
      A interdisciplinaridade, segundo ele, é parte fundamental da solução. Para o professor, questões complexas, como o racismo ambiental, não “cabem” em uma única área. Bordin ressalta que a engenharia deve dialogar com a sociologia, o direito, a saúde pública, a geografia, a história, para buscar soluções realmente integradas e justas.
      O movimento, para o professor, também deve alcançar a pós-graduação. Ele comenta que já existem programas em Ciência, Tecnologia e Sociedade no Brasil, mas reforça que ainda é preciso que as engenharias assumam o debate. “Produzir conhecimento sobre racismo ambiental não é opcional, é parte da responsabilidade social da profissão”.
      O contato direto com comunidades, catadores e mulheres das periferias, afirma o professor, transforma também os engenheiros que estão em formação. “Esses aprendizados sociotécnicos mudam a forma como nossos estudantes veem a profissão. Eles aprendem que projetar não é desenhar uma obra, mas, sim, produzir dignidade”, finaliza o professor.