Filosofia e conhecimento: como Marx e Hegel nos auxiliam na compreensão da atualidade
"Quem combate a ciência combate os seus investimentos, espaços, atores e veículos de circulação e comunicação", diz professor Celso Eidt, do Campus Erechim

Publicado em: 11 de março de 2021 09h03min / Atualizado em: 11 de março de 2021 10h03min

Como o estudo da Filosofia pode contribuir para os debates atuais? Como articular questões seculares e trazê-las para a realidade de hoje? Essas sejam, talvez, dúvidas comuns para quem está longe do ambiente acadêmico e, mais ainda, para quem pouco conhece sobre uma ciência tão antiga. Na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) – Campus Erechim, que oferta o curso de Licenciatura em Filosofia, diversas pesquisas se dedicam a observar conexões entre autores que moldaram concepções do que a sociedade entende hoje por política, esfera pública, entre outros conceitos. Um dos exemplos é o professor Celso Eidt, que nos últimos anos pesquisou a relação entre dois célebres estudiosos: Max Weber e Friedrich Hegel.

Celso investigou os conceitos de Estado e de Sociedade Civil, apresentados por Hegel na obra “Linhas fundamentais da filosofia do direito ou direito natural e ciência do Estado em compêndio”, para depois examinar como Marx respondeu criticamente ao livro e suas posições. Marx publicou “Crítica da filosofia do direito de Hegel”, além de diversos outros textos em que, sob diferentes perspectivas, apresenta as relações entre o universo da esfera política e as determinações do ordenamento social, conforme aponta o professor da UFFS.

- É um projeto individual na área da Filosofia Política e Ética, que contribuiu nos trabalhos realizados em grupos de estudos que o curso de Filosofia desenvolve regularmente. Além disso, o projeto auxiliou no desenvolvimento das atividades de ensino, que são contempladas pela discussão de aspectos temáticos significativos do projeto de pesquisa – destaca Celso.

A pesquisa já rendeu alguns artigos, como “O jovem Marx e os dilemas do Estado Moderno”, que compõe o livro “Estado e Justiça – Considerações Filosóficas” (EDUCS, 2020).

Eidt: "Quem combate a ciência combate os seus investimentos, espaços, atores e veículos de circulação e comunicação" (Foto: Acervo pessoal)

Nós entrevistamos o professor Celso Eidt para comentar alguns dos achados de seus estudos e de como eles podem estar conectados a debates da atualidade. Conversamos também sobre o negacionismo em relação ao conhecimento científico, a tentativa de descredibilizar a imprensa, entre outras questões.

Qual a principal perspectiva de Marx diante da obra de Hegel?

A relação de Marx com o a obra de Hegel é de reconhecimento e de crítica. Reconhecimento pela profundidade e amplitude que o sistema da filosofia do idealismo hegeliano alcança. Sobre a Filosofia do Direito, Marx afirma que é a mais rica elaboração do Estado moderno e a negação de “todas as anteriores formas de consciência na jurisprudência e na política alemã”.

Na crítica, Marx afirma que Hegel enfoca o aspecto teórico, do movimento de ideias, como a verdadeira atividade humana, deixando em segundo plano a atividade prático-sensível que determina efetivamente a existência humana. É como se Hegel invertesse a relação entre sujeito e pensamento (o homem pensa), em relação da ideia consigo mesmo (a ideia se pensa). É preciso pôr a filosofia sobre os pés, dirá Marx.

É possível fazer uma distinção entre o conceito de esfera política a partir dos dois autores?

Para Hegel, o Estado é a esfera da realização universal da liberdade humana porque integra e concilia o conteúdo dos interesses e fins particulares com os universais. As diferenças e contradições da sociedade civil são superadas no Estado.

Para Marx, o Estado é uma universalidade apenas abstrata, formal, que realiza o indivíduo idealmente, como cidadão de direitos e deveres. Se a forma dos direitos e deveres é universal, seu conteúdo é dado pelas condições materiais particulares da classe hegemônica da sociedade civil. Assim, o Estado é um instrumento a serviço da classe burguesa, cujos interesses particulares foram elevados a interesses universais.

A crítica de Marx é sobre a concepção de Hegel acerca do Estado, correto? Viriam daí as rupturas entre instituições e cidadãos, ou representantes e representados, observadas hoje por Manual Castells, por exemplo?

Hegel defende a representação política por estamentos. O poder de legislar conta com representantes dos diversos estamentos, mas tem a hegemonia do estamento dos funcionários públicos, que para Hegel se ocupam essencialmente com os assuntos universais.

Na juventude Marx critica a tese da organização social e da representação política por estamentos. É a reprodução no Estado da cisão na sociedade civil. Na ocasião, Marx defende o sufrágio universal. É um democrata radical na defesa da representação política. Depois considera a hipótese da superação do Estado Político e da organização social da comunidade humana.

Marx teve na imprensa de sua época o espaço que lhe faltava no ambiente acadêmico. A que se deve isto?

Os jovens intelectuais de inspiração liberal (esquerda hegeliana), não encontravam espaço nas universidades, cujas cátedras eram entregues aos adeptos do ideário teórico da cultura e das tradições da Monarquia (liam Hegel como monarquista). Distinta da França pós-revolução, com um Estado laico e democrático, a Alemanha era um país compartimentado sobre o qual a Prússia exercia sua hegemonia.

A imprensa liberal era o único espaço para a atividade da crítica filosófica e políticas ao atraso alemão. A experiência do confronto de ideias no cotidiano dos jornais, sua influência política, animava os jovens intelectuais alemães. Mas a reação da censura acabou com o entusiasmo e levou muitos deles ao exílio, como foi o caso de Marx.

Os movimentos contrários à ciência, que observamos na atualidade, também são encontrados na tentativa de descredibilizar o trabalho da imprensa profissional. O que Marx nos ensina sobre esses tensionamentos?

O obscurantismo e fanatismo das relações entre religião e política, o negacionismo das teorias científicas diante da atual tragédia sanitária, repercutem na imprensa. As teorias científicas precisam ser publicadas, reconhecidas na comunidade científica internacional. Neste sentido, quem combate a ciência combate os seus investimentos, espaços, atores e veículos de circulação e comunicação. A imprensa constitui um poder, influencia e interfere na vida política. Ela não existe apesar da história, mas dela é parte.

Para finalizar, uma provocação: por que pesquisar Filosofia hoje?

É uma questão sugerida cotidianamente, seja ao estudante de Filosofia, seja ao professor, seja à própria Filosofia. Uma pergunta que incide sobre o direito à existência da cultura filosófica. O pragmatismo da sociedade burguesa, voltado aos valores imediatos e úteis, questiona e tenta dispensar um saber que se ocupa da tradição de 2.500 anos. A compreensão do atual contexto social implica o resgate de sua formação histórica, a pesquisa das raízes, e este é o trabalho da Filosofia. Ela se ocupa com a totalidade das experiências humanas, sejam do passado, sejam do contexto histórico vivo.