Em coletânea sobre música disco no mundo, capítulo sobre o Brasil é de professor da UFFS
Contextos político e cultural e mudanças comportamentais foram relacionados para tratar do cenário do movimento da música disco.

Publicado em: 29 de junho de 2022 11h06min / Atualizado em: 30 de junho de 2022 11h06min

Uma pesquisa sobre a música disco no Brasil, realizada pelo professor da UFFS – Campus Chapecó Ivan Paolo de Paris Fontanari, foi publicada na coletânea “Global Dance Culture in the 1970s and 1980s: disco heterotopias (2022)”. O livro, organizado por Flora Pitrolo (University of London) e Marko Zubak (Croatian Institute of History), reúne estudos sobre a música disco e seus contextos em vários países.

Para compor o capítulo, o professor buscou diversas fontes disponíveis (mas dispersas), procurando apresentar um panorama do fenômeno disco no Brasil da década de 1970, incluindo o contexto político, a emergência da classe média urbana nas capitais litorâneas, a inserção de políticas de gênero na indústria cultural, relações de poder étnico-raciais presentes na dimensão sonora e na identidade musical.

O professor Fontanari é antropólogo e já havia estudado movimentos relacionados à música em, pelo menos, duas oportunidades: no mestrado, quando estudou as festas rave em Porto Alegre e no Brasil; e no doutorado, quando a temática foi o universo da música eletrônica na periferia de São Paulo. Porém, ele não tinha se aprofundado na música disco quando recebeu o convite de um dos organizadores do livro para escrever a respeito do gênero musical.

Da dissertação, derivaram dois capítulos de livros em inglês, que provavelmente foram a maneira dos organizadores do livro encontrarem o professor. “Recebi o convite e pensei um pouco, porque teria que fazer uma pesquisa a respeito da música disco e precisei refletir como a faria. Sou antropólogo e etnógrafo (faz pesquisa quase sempre no presente). Há etnografia histórica, mas eu trabalhava com pessoas vivas. Teria que fazer uma pesquisa com uma estratégia diferente”, contou o professor.

Não havia, conforme ele, trabalhos acadêmicos. Para tratar do tema, então, ele buscou diversas publicações, como bibliografias de figuras destacadas na época, livros com colunas jornalísticas (destaque para o jornalista Nelson Motta, que foi muito ativo na música disco), informações encontradas na internet, como discografias e até mesmo capítulos da novela Dancing Days, que contribuiu para mudanças de paradigmas comportamentais da época. “Esse é o tipo de pesquisa que chamamos de estudos culturais, que se vale de diferentes fontes. Como sou da área de Antropologia da Música, já tinha experiências em obter informações de gravações”, lembrou ele.

Segundo o professor, a música disco teve um forte impacto na formação da percepção urbana sobre o corpo, o uso do corpo, as tendências e os estilos de vida cosmopolitas que aconteceram no mundo na década de 1970. O movimento iniciou em Nova Iorque e Paris, cidades conhecidas como capitais mundiais, e acabou se expandindo para o mundo todo. No Brasil, foi quase no mesmo ano, trazido por uma elite cultural, do lazer, do comércio cultural, que circulava muito nessas cidades e no Brasil.

A partir dessas ações da elite cultural do país, surgiu a primeira discoteca (cujo nome, surgido na década de 1970, era relativo ao lugar para se dançar disco). Conforme as pesquisas do professor, Motta abriu a primeira discoteca. Chamada Dancin’ Days, estava localizada dentro de um shopping recém-inaugurado, como forma de promoção do estabelecimento comercial. “Foi um grande sucesso, um ambiente de pessoas conhecidas, que tinham o estilo de vida mais cosmopolita, liberal e libertino também. Tinha a questão do uso de drogas e da sexualidade aflorada”, resume ele.

Com o sucesso da discoteca, a Rede Globo comprou o direito do uso do nome Dancin’ Days e produziu a novela, tornando a música disco e a discoteca um fenômeno de massas. A novela, com Sônia Braga, foi muito famosa. “A novela tratava de questões da época: questões familiares, de jovens que não queriam seguir as ordens da família, em um contexto muito patriarcal ainda. Era um momento de transição de um sistema patriarcal familiar mais rígido para um sistema patriarcal mais aberto, em que os jovens tinham mais opções de estilo de vida e carreiras profissionais. Estavam insatisfeitos com as imposições familiares, a formação católica muito forte e, ao mesmo tempo, a psicanálise virou moda”, relatou ele.

O movimento disco, então, como explicou o professor Fontanari, trouxe um estímulo à expressão individual, ao extravasar (a própria música de abertura da novela trazia essa sensação). “Isso tem a ver com a expansão ou fortalecimento do individualismo moderno; aquela ideia de que cada pessoa é única e deve se libertar, extravasar, divertir-se. A música disco também teve um papel muito importante na libertação da mulher. Foi o primeiro momento em que as mulheres poderiam sair sozinhas à noite. Antes, a diversão era elitizada, nos centros urbanos, e seguia um modelo muito rígido: geralmente os homens convidavam as mulheres para sair à noite para ir em uma casa noturna, que era restaurante ao mesmo tempo, e se dançava MPB, bossa nova, em casais”.

Outras questões que passaram a ganhar importância a partir do movimento disco, foram a psicanálise (com a valorização do autoconhecimento) e a pornochanchada, gênero cinematográfico de comédia sexualizada. Segundo o professor, são filmes que tratam de traições, relações amorosas, homossexuais e de mulheres “liberadas” (termo usado na época para as mulheres com vários parceiros). “Eram histórias de homens ricos gays que aliciavam meninos surfistas na praia; do cara pobre que é apaixonado pela menina de classe média. Enfim, coisas que para a época rompiam muito com os valores cristãos dominantes, valores ‘da família’”.

O professor constatou que a música disco surge como uma versão para o público branco da música funk e soul (música negra norte-americana), que estavam fazendo muito sucesso nas periferias urbanas das duas maiores cidades do país, São Paulo e do Rio de Janeiro.

“Nesse ponto, conecto com a pesquisa que eu já tinha: os bailes black dos anos 1970 foram uma febre nas periferias, aparecendo também em Belo Horizonte e Porto Alegre, por exemplo. Mas era uma onda que estava pegando como movimento de identificação dos jovens negros, principalmente, com uma tendência internacional. E aí que foi introduzido o rapp no Brasil e que surgiu o funk carioca, foi da mesma base de música black e soul. Eram projetadas imagens de personalidades negras. Foi na mesma época que surge a música disco – não sei se algo intencional – uma estratégia para aproveitar esse novo estilo de dança, de música, direcionado ao público com poder aquisitivo. Porque, se analisarmos a música (especialmente o estilo de cantar), a música disco é a música soul. É parte da história do Brasil e do mundo urbano mais contemporâneo que não está esquecido – está na gente – mas que não tínhamos escrito a respeito ainda”.

Sobre o contexto maior do país, o professor ressaltou que todo movimento cultural tem efeito político. “Isso aconteceu justamente na época da ditadura militar. E aí que adquire um sentido político mais forte ainda, além de questionar essas estruturas tradicionais, ele se opunha claramente ao regime militar, ao conservadorismo, à censura, mas era algo que não chegou a sofrer repressão. Sofreu alguma censura, mas era algo muito fora do entendimento dos militares”, explicou.

A coletânea sobre a música disco no mundo está publicada em inglês. Caso queira mais informações sobre a obra, envie um e-mail para ivan.fontanari@uffs.edu.br.